top of page

Crônicas

Quando a luz se acaba, de início pode-se até ouvir aquele coro de "aaaaaw", como quando um professor anuncia para todos de sua turma a matéria para a prova. A princípio um vazio parece tomar conta das ruas, das casas, das famílias, de mim. De pouco em pouco, cada nervo se acalma e vou me acostumando àquela pura escuridão, o mesmo faz minha vista, já passo a enxergar em meio ao breu e aquilo que antes me ocupava o cargo que não posso mais fazer, torna-se pura e mera bobeira – mesmice.

Passo a explorar a casa, os sons, os cheiros, me entupo desse vazio corpulento em meio ao nada. Penso em ascender uma vela, mas desisto, ascendo um cigarro que é melhor. Aos poucos relaxo, enquanto a brasa me ilumina, e penso em o que cada um faz em suas casas no momento: será que dormem? Será que choram? Talvez se masturbam, ou quem sabe ainda se revoltam, como eu mesmo fazia a minutos atrás.

Meu cigarro ainda segue na metade, fumo calmamente, mas já penso em meu próximo – a noite estava muito boa para acabar em poucos tragos. Fecho então os olhos. Fecho os olhos e penso em tudo que estaria fazendo, porém agradeço por não os fazer, penso que talvez arregale minha vista e acredite estar cego, devido ao breu que abraça minha alma. Penso em mais nada, algo me corta, abro meus olhos e a luz já voltou. Repentina; sarcástica. Logo quando eu vinha a me acostumar com sua ausência. Pasmo, olho para um lado, olho para o outro; tudo era mais claro quanto estava sem luz e sem vista. Tudo era mais claro envolto no nada.

Levanto-me, vou ao interruptor, apago cada uma das luzes do apartamento, fecho as cortinas, sento-me ao chão acolhedor, novamente ascendo um cigarro, e bem vindo as maravilhas do nada. Como eu queria que todos os dias acabassem sem luz.

 

Não tenho muito orgulho das coisas que faço, muito menos daquilo que fiz; não sou santo nem demônio, nem água nem o óleo, mas de fato já fiz coisas que até eu mesmo desconfio.

Em minha confusa juventude, suprir o tédio e a insegurança reprimida jamais era fácil. Primeiro se era necessário fazer amizades – boas ou ruins não importava, o que valia era a companhia. Em segundo, consolidar-se num grupo; ninguém ligava pra ideais ou interesses, paixões ou prazeres, contanto que você se tornasse parte do todo, o todo se encontrava em parte de você. E por último os ritos; o pior dos piores. O meio onde cresci tinha suas peculiaridades, e de fato nem uma delas era sadia como a água ou o ar. Nosso costume principal pra assassinar o tempo era o sadismo; cerca de cinco moleques se juntavam, todos descalços, surrados, então um trazia seu tubo de cola e logo tudo começava. Só de lembrar me sinto mal, eu e mais meia dúzia de amigos saíamos a rua sedentos e a busca de formigueiros, e assim que achávamos aquele casulo de enorme vida e acolhimento, expúnhamos então toda nossa amargura infantil e derramávamos cola por todas aquelas pequeninas e indefesas, as imobilizando eternamente em suas poses não pensadas.

Não importava o quanto nós torturávamos estas pobres formigas, sempre voltávamos no dia após a noite pra massacra-las novamente. Nem sei dizer quantas inocentes sofreram em nossas mãos, algumas talvez mães de família, outras quem sabe jovens rebeldes. Não sei, não importava suas maneiras, todas eram coladas e arrebatadas no final.

Hoje cresci, crescemos, somos velhos, chatos, amargurados como quem sofre pelo peso do passado. É duro encarar nossas atitudes independente do momento, mas nem tudo é passado, nem tu se é o que foi – somos o presente em sua essência, e o presente já é nosso futuro. Sei que a cada passo envelheço e a cada segundo chego perto de minha morte. Em breve não existirei, meu fim chegará, o tempo passará, o mundo se aquece e logo nada vai restar.

As vezes penso se ao fim irei me arrepender de tudo – até destas palavras que agora escrevo – porém a esperança no aquecimento global me demonstra um belo fim a humanidade (não me interpretem mal), apenas vislumbro um justo fim ao nosso sadismo, nossa amargura, e a podridão em cada um de nós. E bem, quem sabe o calor gerado por nossa indulgência, nosso descaso, nosso torpor; acabe enfim com todos, reviva o mundo, reviva a vida, e derreta todas colas do passado pras formigas se salvarem.

 

Sempre, em minha vida toda, possui uma verruga bem grande – as vezes até cabeluda – bem em meio ao meu pescoço. Nunca gostei dela. Nunca! Ela vivia bem na viradinha entre queixo e pescoço, e bastava uma olhadinha pra cima e todos já viam essa aberração. Eu tinha realmente ódio dela, sempre que possível usava gola alta, aparava seus pelinhos, olhava para baixo ou apenas colava um band-aid. Mas ainda assim, dia após dia seguia eu incomodado.

Certa feita, lá tava eu, em mais um fatídico dia normal e resolvera fazer a barba pra me sentir menos pior. Fui ao banheiro, encarei-me no espelho, lavei o rostinho, pus creme de barbear e comecei; gillette pra lá, gillette pra cá: lavava os resquícios e voltava do início; gillette pra lá gillette pra cá e pronto, tava feito. O caos tava feito. Sangue pra todos lados e pra todos cantos; de mim jorrava doses e doses do mesmo sem jamais sequer parar. Minha vó já dizia, "a pressa é inimiga da perfeição", mas será que é? Me lavei todo, me sequei, estanquei a ferida, olhei-me no espelho, e lá estava. Lá estava o meu "eu" que sempre quis ser. Não podia acreditar; como em tão prosaica vida, viria a calhar deu me cortar ao fazer a barba e amputar logo a tal verruga que odiei pra sempre ter. Não pude crer. Passei dias e noites radiantes, me sentia um próprio sol ambulante de tanta felicidade emanada. Aproveitei todo meu tempo pra registrar fotos minhas, andar pelas ruas, olhar para o céu e flertar com terceiras. Tudo muito único, confirmo. Passei daí em diante a dividir minha vida em antes e depois da verruga – quase como uma passagem bíblica da auto aceitação em tempos de auto martirização. Tudo lindo, tudo belo, mas novamente me pergunto; será?

Eu me olhava no espelho e via exatamente o que queria ser, palavra! Via cada traço e cada fragmento do que almejava assim a mim – chegava a babar. Realmente, porém não via de fato quem eu era. Não mesmo e nem um pouco. Já não me reconhecia nas fotos, quem diria no reflexo do espelho. Aquele serzinho ali, de certo não era eu. Não era, mas tinha de ser. A verruga se fora e nem sequer nos despedimos, nem nos encaramos. Ela partira e nunca mais voltara. Tanto a xinguei e tanto a odiei, mas agora em meu âmago sinto toda a sua falta. Sinto o quanto já não sinto quem eu sou.

Saudades eternas verruga!

 

Muitas vezes já quis vim a morrer. Muitas e muitas mesmo. Porém, nunca sonhei tanto com esse mórbido espetáculo, do que quando ainda me era uma pequena e degenerada criança. Apenas um filhote nesse oceano de atrocidades. No entanto, tente não confundir sua mente confusa; tal sonho jamais era um desejo ou um almejo, como se dá nas tendências suicidas. Na verdade, tudo era uma fantasia de minha criatividade infantil, onde em todos meus traumas e peculiaridades, eu me punha enfim a imaginar: como seria se eu então morresse? Como viriam a reagir e como seguiria o mundo sem mim? Como meus inimigos se afetariam e até o que seria de minha reputação? Tudo isso reluzia em minha mente, e me inspirava – nem que fosse só por um dia – a o quanto antes experienciar essa tal morte. Parecia tão apoteótico e heroico; apenas deixar de existir e ser mais uma das injustiças do universo. Todos se lamentando do que fizeram e do que poderiam ter feito. Lembranças de mim romantizadas e minha imagem sempre intocável – como um próprio santo católico. São Bruno das ilusões. As lágrimas escorreriam por dias nas faces alheias, e meu nome seguiria como saliva na boca dos demais. Enfim viria meu reconhecimento, de se ser somente eu. Apenas e somente – o ser que hei de ser.

E por dias seguia e segui-me nessa vida; fantasiando de todas as facetas essa tão reconfortante morte. Minha própria vida constava nela. Tudo era possível em meu fantasiar, e lá eu habitava tão quanto nesse planeta. Porém de súbito, se era enfim tão bom ter a morte como opção, que conclui que somente estando vivo para ter-se essa escapatória. Morto eu jamais poderia opcionar pela morte, e a ter tão próxima como minha fiel companheira. Minha shotgun. Era somente vivo que eu poderia morrer, e apenas assim que eu podia sonhar.

Desse dia em diante, nunca mais quis estar morto. Somente morrer.

 

Início, meio, fim e tudo de novo; início, meio, fim e tudo de novo. Desde que eu nasci me prenderam a uma cadeirinha de bebê (elétrica), incapaz de me mexer ou piscar, só aguardando vagarosamente o sapatear de minha morte, enquanto assisto bem da primeira fileira essa vida morna e entediante, puro arroz com feijão de um ser sem livre arbítrio, se esvaindo pelo ar. Nessa cadeirinha, consigo ver – mesmo que eu não queira – em primeira, segunda e até terceira mão, os passos largos e longos da tecnologia se avançando. Passos mecânicos é claro. Me assusto e me encanto. Não paro jamais de refletir sobre tudo isso; só faço isso da minha vida. Meu hobby é pensar e meu descanso é refletir, fico horas nisso tudo e só me paro quando não quero. Como que uma lei de Murphy do intelecto, dá pra imaginar? Certo que dá.

Nesses pensamentos, percebi que sou tão maquina quanto as outras máquinas. Sou tão robotizado quanto qualquer inteligência artificial que é programada – tirando apenas talvez, que eu não sou tão inteligente quanto elas. Eu até tenho sonhos e desejos humanos, porém que são simplesmente metas estabelecidas a se executar. Minhas paixões são meros produtos da minha ansiedade. Me ponho a executar obras e feitos, tão ardentes e megalomaníacos, simplesmente para atingir tal objetivo. E assim que eu os alcanço; já me canso; já desisto; já procuro outras metas, outro intuito. Me ponho a viver toda uma vida em todos seus feitos, apenas para um momento crucial de prazer. Um único momento. Porém assim que o concluo, já não o quero. Já busco outro, tão astuto nessa vida dançarina. Parece que sou incontentável: uma galinha que não para de comer enquanto ainda tem milho em seu comedouro; porém pior que isso; eu sou a galinha que assim que para de comer, já se põem a sonhar com um dia em que terá mais milho pra se deliciar, ignorando sua mesma necessidade.

E pra que falo tudo isso? Será que meu mecanismo mandou? Será que sou o programador dele que me auto martirizo pelo próprio prazer? Quem sabe sou mesmo é um bobão que não agarra os bons momentos e os aproveita. Mas eu não ligo mais; tudo já acabou. É só o fim de um novo início e o início de um novo fim.

Pronto, terminei de vomitar todas as palavras que “queria”. Acho que já posso voltar a comer agora.

 

Os surdos, os mudos e os homens da caverna

Desde pequeno o chuveiro sempre foi meu psicólogo. Sentado no chão, com a água gelada na cabeça, o xixi esquentando as pernas e o shampoo ardendo os olhos. Minhas maiores ideias e piores decisões, sempre vinham da minha indiferença em pensar. Passava horas naqueles banhos, cantando ou chorando, e as vezes até me lamentando, muito pouco me lavando. Mas focado sempre em pensar. Pensando no ontem, no antes de ontem e no amanhã. Pensando no que não falei e no que nunca ousaria falar. Pensando em você aqui, pensando em mim ali. Pensando até em me matar.

Com o tempo, meus filminhos mentais e meus banhos preguiçosos, começaram a amadurecer. Tomando mais consciência e menos prazer. Me ajudando a me atrapalhar, me sujando ao me molhar. As decisões ali tomadas já não eram tão boas quanto antes, os xixis saiam mais gelados do que quentes, e confuso e desconfortável eu passei a me questionar. Questionava a verdade, a falsidade e a dor de dente. Questionava os meus amigos, minha família, o ovo e a galinha. Questionei a mim, questionei você, questionei o próprio questionar. Questionei o pensar. Até hoje não sei como se dá, como todo esse caos toma forma na minha cabeça. Como ele mais grita do que poesia. Como ele mais confunde do que explica. Como ele sobrevive sem viver.

Um dia que acordei meio filósofo, comecei a me perguntar como era o pensamento dos bebês, como era o pensamento dos surdos, dos mudos e dos homens da caverna. Nunca entendi como era pensar sem pensar. Simplesmente sem visualizar, ou sem ter palavras pra explicar. Tem muita coisa que eu não entendo, mas isso eu não entendo mais que tudo. Sentido não existe quando não se pode criar um. Conceitos só são quando podem ser explicados. Bebês não entendem o mundo, homens da caverna não conhecem o mundo, surdomudos não experimentam ele por completo, e eu sou só mais um menino confuso.

Um dia todo mundo. E quando digo "todo mundo", digo o mundo todo. Não só os meus amigos, os motoristas de caminhão, ou os bobos que leem esse texto. Mas sim todos os medíocres residentes desse planeta, e até os que já saíram dele. Tanto os executivos quanto os flanelinhas. Tanto os mendigos quanto os homens da caverna. Tanto os surdos quanto os mudos. Todos um dia vão tomar seu último banho. E eu peço de coração, de pezinho junto e olho fechado, que todos(inclusive eu) pensem muito. Pensem fora do visualizar, pensem em pensar, pensem sem pensar. E ao fim do banho, de cabeça limpa, sem piolho ou arrependimento, todos juntos simplesmente... Todos simplesmente.

bottom of page