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Contos

Logo em seguida a meu aniversário de doze anos (vinte dias e quinze horas após o ano 2000), meus pais haviam resolvido que iriam se mudar. Aparentemente iriamos para o extremo totalmente oposto aonde vivíamos; um bairro chique e bem falado chamado “Ipanema”; nunca ouvira falar. Nós vivíamos no Méier, bem no centrinho mesmo, uma rua paralela a Dias da Cruz, que mesmo por anos vivendo, sempre me esqueço do nome. Creio que sempre havíamos vivido lá e muito bem por sinal, minhas memórias não conseguiam recordar qualquer lugar que antes tivéssemos morado, então creio que tenha sido lá mesmo. O Méier era um dos principais bairros da zona norte do rio, já Ipanema um dos principais da zona sul. Nada disso entrava muito bem na minha cabeça; por que agora em que meu pai ganhara dinheiro, fizera sucesso na vida, “vencera” como muitos diriam, iria querer logo então descer as escadas demográficas do Rio – indo ao sul desconhecido da cidade? A compreensão era difícil, porém minha empolgação seguia viva. Essa parecia a oportunidade perfeita pra conhecer novos lugares, novas ideias e novos amigos. Nunca me contentei com pouco e queria mesmo era mais.

Rua Barão da Torre, essa sim eu me lembrava o nome; prédios altos, muitas arvores, velhinhos e igrejas. Era um bom lugar. Passei a brincar bastante na rua, não tinha muitos amigos (na verdade nenhum) mas dava pra me virar; sempre soltava pipa quando o vento tava bom e andava de patins a desviar veloz dos carros. Era férias e eu queria mesmo era me embrenhar ao caos. Meus pais pareciam estar contentes com a nova morada, mas desaprovavam completamente meu comportamento; diziam que eu era muito como as crianças do Méier, que eu tinha de me reinventar e conhecer novas pessoas. Conclusão, semana seguinte lá estava eu matriculado obrigado a estudar. Colégio velho, espaçoso, sombrio; bem, eu gostei, não posso negar, até que era interessante ter um novo propósito de vida, uma rotina, era só eu focar nas amizades e logo tudo daria certo.

Esta era uma escola bem diferente de todas as que eu havia estudado; ao invés do inglês e espanhol básico que aprendíamos, também havia francês, latim, alemão, e um tipo de matemática que me soava quase japonês. Com as crianças não era diferente, ninguém parecia querer brincar ou fazer amizades, cheguei a ver meninos de nove anos já fazendo o seu currículo. “Será que aquilo que era o normal?” eu me perguntava. Todos lá eram o extremo oposto de mim e eu não sabia o porquê. Nunca ouvira falar que a latitude ou a longitude demográfica influenciava tanto nas maneiras de se ser. Enfim, que se dane, preferi seguir sendo como eu era.

Logo desencanei de toda aquela pressão escolar e aceitei de fato minha solidão de amizades. Eu ia pra escola, sentava a bunda na carteira e esperava o tempo passar. Meus pais não reclamavam, meus professores não reclamavam e meus amigos não existiam. Assim fui seguindo. Lá pro segundo bimestre escolar, desenvolvi um curioso hábito de sempre visitar o cemitério ao lado de minha escola – todo dia após as aulas. Eu ia sozinho, passava umas horas e logo voltava; dizia a meus pais que estava estudando na casa de amigos, ou algo do tipo que os fizesse acreditar. Meus passeios eram meramente contemplativos – ao menos de início – onde ficava sempre a admirar as lápides e esculturas ali presente. No entanto, de pronto esse despretensioso passeio se tornara factualmente um lugar de amizades e acolhimento para mim. Não mais visitava o cemitério para admirar, mas sim pra rever meus únicos amigos daquela zona sulista – meus comparsas.

Antes de soar estranho (não!), meus amigos não eram os coveiros que ali trabalhavam, o padre da pequena igreja, os visitantes de curta passagem ou as viúvas sentadas sempre a chorar. Meus amigos eram os mortos, as covas preenchidas, as lápides em ruinas, esses sim eram meus amigos. “José Arnaldo de Alcântara, que o brilho de seu eterno sorriso ilumine sempre seus caminhos, 1921-1968”, “Amélia Soares Vintém, te amo e sempre te amarei irmã, espero que os anjos te guiem assim como tu me guiastes neste mundo, 1945-1992”, “Ariel Ventura Borges, como sonhei com tua chegada e como almejei nossa vida juntos, o pouco que te conheci já fora tudo ao meu querer, 1997-1997”. Ai ai queridos amigos, como era bom poder conversar com vocês, imaginar os “vocês”, sentar as suas margens e fantasiar cenários e diálogos diversos. Vocês eram e foram tudo do que me faltava, e ainda muito do que me acolhera nessa jovem e pacata vida. Eu sei que suas vozes não ressoavam, não emanavam nem gritavam, mas eram ainda assim tão acolhedoras a mim. Poucos me entendiam como vocês e poucos ainda me entenderão de forma tão profunda quanto vocês fizeram. Nossos encontros eram o meu animo para ir às aulas e para seguir nessa vida. Essa vida tão curta. Essa vida que já se acaba. Sinto falta de nossos encontros e de nossas risadas, hoje já não me encontro com doze anos, nem morando em Ipanema; me encontro morrendo. Morrendo, morrendo, morrendo, e cada vez mais morrendo. Meus abusos me causaram danos e meus danos me causam fim. Ainda não sou tão velho, mas já não posso mais viver, sei disso. As vezes isto me chateia, me rouba lágrimas, não posso negar. Porém, pensar que em breve os encontrarei, os terei novamente comigo como sempre fora – meus eternos amigos até que a morte nos una –; sim, talvez isso me acenda uma leve faísca de esperança em aceitar o inaceitável.

Uma fé?

 

Domingo


Como de costume, despertei a mim mesmo plenas seis da manhã entre a madrugada e a matina, e em olheiras profundas e preguiças de dormir, me pus prontamente de pé como quem preferia não o tá. Após um longo estalar corporal, vesti minhas velhas roupas, tomei meu velho chá, mijei e me lavei, e logo fui tão cedo ao pé da rua, viver o que tinha a explorar. O sol ainda tímido se escondia entre as nuvens, e as nuvens como olhos me choravam suas chuvas. Chuvas leves e calmas, que mal se encostavam ao solo já eram evaporadas pelo fervor do asfalto, tudo isso plenamente enquanto eu lamentava ter esquecido minha umbrela.

Me encaminhava então pelas estreitas calçadas de meu bairro – descia a Fortunato de Brito, logo adentrava a Comandante Rubens Silva, e mais breve do que esperava já me via na rua Potiguara. Nos fones escutava uma sinfonia que a anos não ouvia, e em meio a notas e partituras, percebi que quase a chegar em meu destino, não havia cruzado com um sequer indivíduo. Que maravilha! Não era segredo algum que diversos carros haviam passado por mim, de todas as cores e tamanhos, mas ainda assim nenhuma sequer figura humanoide adentrara meu caminho ou me perturbara com seu truculento e ensurdecedor existir. Era apenas eu e mim mesmo nesse vasto planeta. Passei a fantasiar então que a vida era realmente assim; os prédios eram peculiares espécies de árvores, os carros eram apenas animais muito rápidos, as publicidades eram meras ficções feitas por mim e todo aquele ermo universo era meu, somente meu.

Segui andando como um próprio recém-nascido, engatinhando pelos vales de meu bairro, vendo todo esse planeta como em minha primeira vez aqui. As poças reluziam vida por cada refração de luz que começava a brotar nos céus, o vento ainda que calmo acariciava levemente minha pele e se ritmava junto a música, eu via bichos se amando e preocupações se afastando. O mundo era só meu, porém eu não era o rei dele, eu era parte dele. Eu era um pouco de toda aquela beleza, sem jamais a ser por inteiro.

Meu caminho continuava em plena admiração e fantasia, não deixando de lado por quiçá um segundo as maravilhas da solitude. No entanto meus passos involuntariamente apressados já me levavam a todo fervor numa autônoma volta à casa, em tristezas e insatisfações. De maneira alguma eu queria dar fim aos meus sonhos que tanto me completavam, esses sonhos onde o mundo não era essa esfera patética recheada de miséria, e onde toda sua magnitude finalmente havia a chance de resplandecer seu encanto verdadeiro. Porém pro meu lamentar, minha morada vastamente habitada se encarregaria facilmente de o fazer por mim, quisesse eu ou não. Meu andar se acalmou em certa melancolia que corroía a alma, mas ainda em sorte, a manhã dominical me proporcionou alguns segundos a mais de ilusão, de maneira que a folga de meu porteiro, evitava assim mais um possível contato não almejado até então.

Avancei a portaria sutilmente, senti a brisa que dava vida em meus cabelos virem progressivamente a óbito, esperei o elevador em que logo apertei para o segundo andar, tirei meus fones, peguei a chave, e então andando a caminho de minha porta me preparei para abri-la, porém antes que de fato fizesse, aguardei não mais que dois segundos, e em todo esse miseravelmente enorme existir temporal, nunca senti tanta falta daquele mundo só meu.

“Quem sabe em outro domingo?” Pensei.

Quem sabe?

Domingo.

 

Me desculpe se te confundi e não o avisei sobre o teor dessas palavras que agora o preenchem, caro leitor. Não, esse não é um manuscrito de início imediato. Se você é um daqueles tantos seres, incapazes de passar por uma linha temporal descomungada e não a organiza-la, sofrendo em TOC’s e ansiedades de manter o mundo em coerência – mesmo quando ele em si não o é. Bem, minhas memórias definitivamente não são para você. Feche agora esses olhos e suma daqui, pois nessas embaralhadas palavras, o fluxo natural de pensamentos invade as linhas e toma conta própria do espaço tempo, o organizando como melhor entender. Essas memórias tem início aos meus cinco anos de idade.

Ultimamente – e perdoem a minha velhice, mas meu “ultimamente” possui ao mínimo dez anos – passei a relembrar com imenso esforço e curiosidade intelectual, cada proeza cotidiana de minha infância, na leviana intenção de redigir um livro de memórias sobre ela. Tentei relembrar cada pensamento e acontecimento, da exata maneira que foram concebidos em minha mente a desenvolver-se. Sempre que olho para trás, tenho a errônea impressão de ter vivido num eterno mar ensolarado em abraços escaldados de verão. Lembro dos céus alaranjados, as peles esturricadas e as sombras todas esticadas a máxima potência pelos chãos, tornando a vida de toda formosa, ainda que tudo se fosse tão falso. Minhas memórias eram como contos vitorianos, que só se romantizavam e romantizavam, ganhando cada vez mais escárnio no submundo do meu ficcionar. Já desistia antes mesmo de começar; perdido tão longe do que fora o real, minha egocêntrica ambição de expor ao mundo essas lembranças que se escondem por entre as gavetas de meu córtex cerebral, só poderia estar fadada ao eterno fracasso. Todas trancadas e emperradas, escondidas e encabuladas. Por dias tentei destrancar uma por uma com as chaves que possuía em mim mesmo. Chaves de diferentes tamanhos e diferentes manejos. Mas ainda que a harmonia se instaurasse nos seus termos, jamais tive sequer uma chance em destrancar esse transe de memórias em ermos.

Foi nesse constante “da mas não recebe”, a ponto de largar minhas ambições nas margens do rio, que lembrei enfim de forma corriqueira, a flecha certeira que feriu meu peito e cravou minha vida (ou a falta dela) para a eternidade em finito sempre. Fuxicando nos empoeirados cantos de minha mente, revi, revivi e rememorei o fatídico dia em que com apenas cinco anos de idade eu descobrira o que era a famigerada e atordoada morte. Descobri sem qualquer dúvida sobre sua paciência a me esperar. Soube que ela me aguardava e me cercava, acariciava com toda a malicia cada amante que eu possuísse e abraçava com todas as forças qualquer amizade que minha se fosse, seguia meus passos e aguardava meus descansos, era ela uma verdadeira força onisciente, minha amiga e minha mulher. Em seus braços tantas vezes lamentei, e em seus ombros sem saber eu já chorei. Ali estava ela sempre para mim, como uma mãe que jamais morre, jamais se decepciona, capaz de persistir em minha infância, minha velhice, meus pensamentos e finalmente falecer tão junto a mim – mas persistir pra sempre viva no olhar desse menino.

 

Não vou negar; costumo passar muito tempo olhando em minha janela. Muito mais do que parece saudável, muito mais do que julgam normal. Eu nem diria que isso seria um ato voluntario de minha parte, eu simplesmente quando percebo, já estou novamente me atendo vidrado aquele enquadre, como que me refugiando na imensidão que tem lá fora. As vezes tenho a impressão de ser capaz de enxergar tudo: os carros que vem e vão, as pessoas em suas intimidades, os passarinhos a voar, vejo também as arvores que dançam com o vento, os gatinhos que dormem na sombra e os moradores pelados em suas casas – sem a menor ideia que lá estou eu a olhar. Mesmo com tudo que vejo, nunca vislumbrei alguém atento em sua janela, observando o mundo como eu faço. Nem uma pessoa sequer eu vi, todos só se dirigem as janelas para cuspir, fumar, tentar um sinal melhor, ou me ignorar. Um verdadeiro ciclo vicioso(se não já viciado) da automação humana. É exatamente por isso que eu não entendo essa sensação que pesa no meu peito e consome minha mente, todo dia me pego paranoico com a consciência afundada em aflições. Tenho certeza que em algum lugar, numa região o quão distante for, bem aos prantos da janela existe alguém a me olhar. Vendo cada movimento meu. Cada piscar e cada soprar. E aqui eu vou ficando; sendo mais um a ser olhado. Mais um ser normal, vivendo normal e agindo normal. Talvez que eu até espie a janela pra mostrar isso para eles. Eles vão ver o quão patético eu sou encabulado nesse quarto, o quão medíocre e simplório esse corpo pode ser. Qualquer coisa eu me debruço e então pulo dessa janela. Qualquer coisa eu pulo, e então tudo vai ficar claro. Claro como quando a luz invade o meu quarto. Claro para sempre e todo sempre.

 

Homem minhoca

Pereira Nunes esquina com Teodoro da Silva, num prédio bem bem alto e estreito. Num prédio estreitamente alto e velho(como uma debilitada minhoca da terceira idade) cercado de comércios locais, pedestres locais, pombos locais e mendigos locais. Bem no primeiro andar dessa construção em formato anelídeo e com ares de prisão, sentada em sua penosa cadeira, minha(amada por muitos e odiada por muito poucos) avó trabalhara por anos como assídua caixa em uma grande bilheteria nacional, vendendo ingressos diversos para diversões não divertidas. Ainda assim, era lá que ela dedicava horas de seu dia. E fora lá que vivera grande parte de sua vida. Coberta de anseios e desejos que a guiavam para amar.

Minha vó tinha exatos um metrô e quarenta de altura, a medida perfeita para poder escolher entre o bebedouro infantil ou o adulto em uma fila. Ela crescera somente até seus 13 anos, e aos 16 já começara a encolher. Aos 18 arrumou seu primeiro emprego, e foi lá que aos 20 conheceu o meu avô. Os dois se apaixonaram à primeira vista. Ou melhor, a sua primeira vista. Por conta da estatura pequenina, e das janelas antibriga da bilheteria, minha vó em toda sua astúcia, se perdeu de amores por meu avô ao ver sua boca silabar, enquanto ele apenas via suas mãos a anotar.

Até hoje ela ressoa essa história aos ventos, e ressalta a todos, que fora naquela bilheteria antiquada que ela encontrou quem a completasse, e descobriu eternamente, que a boca é, e sempre será, o membro mais importante para se amar. Seja nos lábios ou nas línguas, com mal hálito ou com comida, sempre há encanto pra ressaltar.

Cresci pensando assim, meu pai era dentista e minha mãe uma cantora. Amantes da boca, que se usavam da lábia e trabalhavam entre dentes, para poderem enfim lucrar. Um cuidava das bocas, e a outra a explorava pra ecoar. Dois pombinhos dos lábios macios, que adoravam se bicar.

Com poucos meses aprendi a cuidar de minha arcada, meus lábios, línguas, dentes, e tudo mais que cercava a primeira fase de minha digestão, melhor do que muitos adultos. Aos 2 anos, descobri comigo mesmo que minha boca, além de influir no amor, também era capaz de falar. Minha primeira palavra dita, não recordo até os dias de hoje, já que pra mim, era muito mais interessante apenas ressoar o grunhido de minhas cordas vocais, do que chegar a decifrar o que fora dito.

Passei e repassei sequências em dezenas de anos pensando assim. Com uma mentalidade fraca e insistente. Aprendi a gritar meus desejos, ecoar minhas vontades, articular meus interesses. Mas nunca a ouvir quem me cercava.

Eu sabia que dos meus lábios viriam a paixão. Mas não que de outros eu precisaria conciliar.

Infame como o mundo, e incerto como um balbuciar antes de falar. Na velocidade de uma tartaruga aleijada, tão lento quanto a própria lentidão. Aos poucos, vim a aprender que mais belo do que toda malícia dançada dos lábios ao falar, e irremediável quanto a sonoridade do próprio gritar. Toda beleza de uma boca, só vem de uma segunda a falar.

Aprender a escutar foi meu esmero, meu repouso ao horizonte. Só se sabe o que falar, quando se ouve de tudo a ressoar. E só se sabe escutar, quando conhece a si mesmo em todos os aspectos e maneiras particulares.

Vivi uma vida de anunciações, aprendi o que devia dizer e como o fazer. Em seguida aprendi a escutar. Escutava tudo o que os outros tinham a dizer, na procura eterna do que eu queria saber. Mas somente em minha maturidade cognitiva, quando atingi esse meu "eu" em mim mesmo, foi aí que compreendi a compreensão em sua forma, e passei a me ouvir. A união indiscutível dos amores fisiológicos, onde enfim a boca e os ouvidos se unem, e se tornam um a mais. Mais um.


Furando o eterno mar celeste, bem na esquina da Pereira Nunes com Teodoro da Silva, um característico prédio se destacava. Em seu formato anelídeo minha avó trabalhara, e eu me punha a filosofar. Minhocas não possuem ouvidos. Minhocas tem boca, mas não ouvidos. O falar se sobrepõe ao ouvir, o insinuar se sobrepõe a escutar. Mas quando não se tem o próprio ouvir, as minhocas se descobrem enfim incapazes de falar.

E sem ouvidos para se conhecer, se tornam então mudas para se escutar.

Surdas de si mesmas, como quem não sabe o que pensar.

 

Chuvas meteóricas em mais um dia de inexistência

Lendo num jornal mixuruca e sensacionalista do meu bairro(um daqueles jornais que te entregam no sinal, você nega, mas o competente profissional é tão insistente, que você acaba aceitando por coação) descobri numa coluna bem escondida, entre uma matéria sobre o crescimento do comércio em Jacarepaguá e uma comovente história de um carteiro que salvara a vida de uma criança ao descobrir que estava transportando por 3 dias um recém-nascido empacotado. Soube bem em meio a essas irrefreáveis proezas do terceiro mundo, que semana que vem; no dia de meu aniversário; aconteceria em mais uma das incompreensíveis maravilhas galácticas, uma singular chuva de meteoros. Uma chuva que não seria molhada e nem arriscada, mas ao meu sofrido privilégio, seria perfeitamente avistada desse caótico bairro que moro.

Animado com esse presente divino, ou apenas coincidido de mais um ano que completo vivo. Resolvi comprar um calendário e anotar a data da chuva meteórica, já que em toda minha existência, nunca fui bom com datas de aniversário.

Na esquina de minha casa, as margens do esgoto de meu bairro. Fui eu, em passos resolutos comprar o desejado calendário. Em meus modos, carregava a resiliência de quem anseia as forças pela especificidade de algo, e em minha mente carregava a malandragem no pensar. Sempre soube que o tal vendedor era aberto para negociações, então me direcionei aquela compra, no eminente intuito de pechinchar.

Chegando a humilde barraca, onde aquele homem de cabelos longos vendia seus diversos calendários falsos; creio que seu cabelo também era falso; me pus ligeiramente a fazer lances e barganhar cada página daquele "diário do mundo" pirata. Minha insegurança e falta de experiência ecoaram comicamente nos ouvidos do homem, e acredito que acabei por comprar tal produto, mais caro do que ele realmente era.

Voltei para casa meio cabisbaixo. Nem dei sequer atenção aos pássaros e borboletas que me rondavam, muito menos aos seres humanos que me cercavam. Cheguei em um abrir de olhos e piscar de bocas em meu quarto, e me pus imersivo a fazer anotações no calendário. Marquei o dia em que estava, o dia seguinte, o próximo, o próximo, e os que faltavam até a meteórica chuva de meu aniversário. Mas ao chegar nessa marca de dia que tanto eu almejava e ansiava. O dia em que meu ciclo vital se fechava e os céus chorariam em luzes. Nesse exato dia 6 de julho, percebi que o produto falso que comprara, tinha um motivo por ser falso. E de forma irônica, demonstrou para mim sua falsidade, pulando exatamente o dia 6 de julho na contagem diária, e sumindo com meu aniversário. Ele simplesmente não existia mais.

Senti a efemeridade das nuvens e o apocalipse dos ares, pesando como algodões sobre minha existência. Senti a falta do sentir me negando a própria vida. E senti bem no fundo de meu estômago um enorme riso de ironia e vergonha alheia, onde meu próprio ser gargalhava de mim mesmo, e via toda as coincidentes voltas da vida, que me esmagavam em tentar viver estando vivo. E simplesmente rolava aos chãos de tanto rir.

Sempre prezei por levar toda depressão de meu mundo de forma cômica, a ver mesmo que duramente, a alegria no horror. Então sendo assim, segui meus árduos dias que predispunham o aniversário, a fazer tudo do que me agradava, e aguardar excitado pelo dia que não existia no calendário, mas que existia em minha mente.

Esperei cada hora e cada fração de segundo se passar, até o inexistente 6 de julho chegar. E ele implacavelmente chegou.

Mais um dia vivo, ou menos um? Mais um ano de vida, ou a proximidade da morte batendo na porta? Essas não eram perguntas que me angustiavam. O que realmente palpitava meu interesse, era ter o veredito se o desaparecimento do; nem um pouco lendário, mas muitas vezes precário; marco de minha existência, me tornava assim mais ou menos vivo nesse mundo? Se toda essa falsidade do que somos e dos calendários que nos cercam, realmente querem dizer algo? Eu não sabia, nem suspeitava da resposta, mas de fato o sentimento de ser cada vez menos "eu" só crescia, conforme refletia.

Diante de meus olhos, aquele misterioso 6 ou 7 de julho avançava vagarosamente, e para distrair minha auto-sabotável cabeça, resolvi apenas ansiar com todas minhas forças e crises ansiosas, pela chegada da derradeira noite. Com toda sua melancolia e maravilhosa chuva de meteoros, que acreditava eu, iria melhorar tudo. Transformando o ruim no bom e o bom no melhor ainda.

E deitado, correndo ou pulando em meu quarto, aguardei no árduo avançar do tempo por aquilo que tanto almejava. Até ele chegar.

Em poucos, o sol se transformou em lua, e a claridade em escuridão. Os relógios anunciavam a noite e meu coração batia em emoção. Corri desregradamente até a solitária varanda de meu prédio, e com um binóculo em meus olhos, passei a instintivamente caçar qualquer raio de esperança nos céus, procurando o submergir das maravilhas naturais que manifestariam minha comemoração. Procurava em cada canto atmosférico, um dos meteoros que me aguardavam.

Já cansado de tanto esperar, quase adormecendo preso aos olhos no binóculo. Uma luz incoerente iluminou minha mente, e por meio de seu brilho acordou meu corpo. Me levantando excitado, começo a ver diante de mim o céu cair em lágrimas; vejo os encantos e os charmes de cada catastrófico meteoro que ameaça a terra em perigo e em tesão; vejo a vida esvaindo e o novo mundo se nascendo. Um novo mundo que a cada segundo se renova, e que não precisa de mim para existir.

Vejo na beleza daquela tempestade, a verdadeira forma do universo. Eu mesmo já não sou mais eu mesmo. Meus olhos começam a lacrimejar. Esse corpo que hábito foge de ser quem ele é, e se abriga nos brilhos do meteoro. E ele chove, e ele chove. E eu choro, e eu choro. Aos poucos, a frequência de cada fragmento de corpo celeste diminui progressivamente em minha vista. Até o ponto que meu corpo se esvai junto com cada aerólito que penetra a terra. E eu finalmente, nessa trajetória de alegrias e depressões, completo meu sofrido ciclo, e sumo definitivamente da existência.


Uma vez, em um jornal mixuruca e sensacionalista, tive a chance de ler uma intrigante matéria que analisava psicologicamente e antropologicamente a mente do ser humano, e a sua contraditória noção de si mesmo. Dentre muitas questões que a matéria falava, uma das que mais atraiu minha atenção foi: irei parafrasear – “Para cada homem, e cada mulher que segue vivo em sua trajetória, é necessário que a noção de sua própria vinda ao mundo esteja sempre sendo relembrada; seja por meio de seu contato familiar, com a mãe que a deu a vida ou o pai que a resgatou ao mundo; seja por meio das visitas a sua cidade natal, ou até as comemorações anuais. É extremamente necessário que cada ser, possa estar ligado intimamente com sua ascensão. Pois caso contrário, será a decadência a andar ao seu lado”.

E sendo assim, a decadência nunca o abandonara, até você maravilhosamente sumir. E talvez perceber que a decadência, muitas vezes é a própria ascensão.



























































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